


O que podem as artes cênicas entre a máquina do mundo e as lutas pela terra?
A Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE) retorna às Minas Gerais no ano do centenário da incursão modernista às cidades históricas (1924) tendo como ponto de partida temático o poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado originalmente em Claro enigma (1951), para pensarmos sobre o poder das artes cênicas frente ao avanço da máquina mundial sob o planeta e em defesa das lutas justas pela terra. A ideia pré-moderna da máquina do mundo enquanto metáfora das engrenagens que movem o universo e a nós seres terrestres remonta da Antiguidade ao Renascimento. Neste sentido, a ideia comporta uma larga memória do mundo como máquina que acaba agenciada, em tom irônico-sentimental, pelo poeta mineiro a partir do eu lírico que caminha por uma estrada de Minas. O poeta começa seu itinerário palmilhando vagamente uma estrada pedregosa de Minas quando, num relance, “a máquina do mundo se entreabriu”, para quem dela se esquivava, no “fecho da tarde de um sino rouco”. Ela convidava a todos para se “aplicarem sobre o pasto inédito/da natureza mítica das coisas”, ao domínio sobre os recursos da terra, e as paixões e os impulsos e os tormentos, tudo o que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega nas plantas. A oferta implica não apenas o domínio sobre todas as coisas também o saber de tudo que define o ser terrestre vislumbrados, é claro, segundo o despertar do “sono rancoroso dos minérios que dá volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo”. Diante de semelhante graça, o poeta baixa os olhos desdenhando colher a oferta que se abria ao seu engenho, pois a treva mais estrita já pousara sobre a estrada. Mesmo rechaçada, a máquina volta a se recompor, miudamente, deixando o poeta de mãos pensas.
O trabalho possui uma vasta fortuna crítica e é considerado um dos mais importantes da obra do poeta mineiro. Dentre outras contribuições, destacamos a de José Miguel Wisnik que analisou, em a Maquinação do mundo: Drummond e a mineração (2018), a relação entre a composição do poema e a expansão do mundo como máquina ligados a escalada técnico-mundializante, capitaneada pela mineração, após a Segunda Guerra Mundial (2018). O crítico salientou que “a promessa de explicação totalizante”, “de cunho regressivo e pré-moderno”, “autoritário e mistificador”, mesmo sem correspondência com o ânimo” “que move esse sujeito insatisfeito e moderno”, não deveria ser menosprezada dada a descrição fulgurante da máquina do mundo que, por sua vez, segundo Wisnik, concentra a cifra histórica e metafisica do poema se considerarmos a magnitude do entorno da mineração e “a chegada da máquina mundializante a Itabira” (2018, pp. 189-190). Mas, além dessa cifra histórica e metafisica mencionada que atravessa o poema, é preciso lembrar da sua intertextualidade, já salientada pela fortuna crítica, com Os Lusíadas de Camões, pois, assim, podemos estender o arco temporal do caminho do poeta à conquista e à colonização europeia do mundo, sobretudo se tivermos em mente que a graça irradiada pela máquina nos lembra do providencialismo associado à atividade colonizadora e ou mineradora portuguesa marcada, muitas vezes, pela oferta divina das terras conquistadas. Deste modo, as lutas pela terra aqui compreendem um leque amplo de sentidos, agentes e contextos relacionados aos processos de libertação e de descolonização de nações e povos, as diversas formas de resistência empregadas por quilombolas, indígenas, ribeirinhos, militantes sem-terra, que, até hoje, buscam o reconhecimento de seus direitos aos territórios que habitam ou já habitaram como, também, outros modos de conceber a terra/mundo que alteram o valor das forças que nos movem e as variadas práticas de combate sublevações, revoltas, motins, ocupações, levantes, dentre outras maneiras de fazer frente ao avanço da máquina ecoando as veredas das Gerais.
Sendo assim, a recusa do poeta (ou suas mãos pensas) nos serve como ponto de partida crítico para pensarmos, a partir das estradas pedregosas de Minas hoje, sobre o poder das artes cênicas situado entre a máquina do mundo e as lutas pela terra, em suas inflexões sociais, políticas e culturais tecidas ao longo do tempo, se pensarmos que num mesmo corpo que vivemos a experiência da degradação dos ecossistemas, as desigualdades globais de variadas ordens e as inúmeras discriminações políticas.
DATA: 23 a 29 de outubro de 2025 – Ouro Preto, MG.